domingo, 17 de junho de 2012

A literatura e o grupo operativo


"A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa...
E, enquanto se passa tudo isso, a  coisa propriamente dita
começa a desconfiar que não foi  propriamente dita."    (Mario Quintana)


Em nosso encontro do 'curso de grupo adolescente' na FMUSP, o Dr. Chafi Abduch salientou a importância de ler outras formas de comunicação, e assim, escutando o que as ficções nos contam, colocamo-nos em uma posição de abertura às sugestões de nossos inconscientes, abrindo um novo leque para novas conexões num grupo que não precisa ser terapêutico, mas que promova algum aprendizado, pois no encontro tudo acontece, e não há um único caminho, sendo mais importante o processo que se realiza, e 'quando alguém acredita em outro alguém, inaugura no outro a fé e algo se transforma...' (V. Hugo, Les Miserables).

O processo de pensar junto é o que importa, e assim, o aprendizado acontece. Às vezes, nem importa o que é dito, mas sim o que desperta. Essa é a potência articuladora do novo, do agente transformador.

Em "O Estranho" de 1919, Freud faz uma leitura da estética na qualidade do sentir, abordando o inquietamento produzido diante da alteridade; o porquê a relação com o outro pode ser estranhamente familiar e nos causar tanto incômodo.  Quando Platão nos propõe o seu mito da caverna, percebemos na própria imagem que formamos com a leitura, a impossibilidade de contato direto com aquilo que é fundamental à existência humana, por isso na arte, a obra é a janela para o universo, e ao percorrê-la temos a possibilidade de despertar em nós mesmos o que há em comum e mais pessoal com a vida emocional dos personagens, o que pode causar também um estranhamento ou uma identificação quando vivemos esta experiência.

São muitos os profissionais de Saúde que sentem o chamamento às artes. Aquele profissional-escritor, apesar da característica exclusivista da profissão abraçada, sempre encontra espaço, pois são grandes leitores e apreciadores das artes. Assim, ao buscar o alivio do sofrimento humano, encontra o belo e, diante do belo, torna-se mais humano, como diz o professor e amigo psicossomatista, pediatra-escritor Meraldo Zisman.

Roland Barthes relata que nunca houve uma sociedade sem certo grau de narratividade ou sem um repertório de histórias próprias ou sem a necessidade de contar histórias. Existimos como seres humanos porque podemos contar histórias!

Uma história pode ser contada de muitas maneiras, ao pé do ouvido, de pai para filho, nas praças, de boca em boca, nos documentos, nos livros, num grupo, com ou sem palavras. Uma história pode ser contada com sons e música, com imagens – gravura, pintura, fotografia, escultura – com imagem em movimento, e de tantas outras formas.

Assim, uma contribuição para esta crônica:

"...Mas eu, sem jeito para o jogo erótico,

Nem para cortejar o próprio espelho,

Que sou rude, e a quem falta majestade

Do amor para mostrar-me ante uma ninfa

Em que não tenho belas proporções,

Errado de feições pela malícia

Da vida; inacabado, vindo ao mundo

Antes do tempo, quase pelo meio

E tão fora de modo, meio coxo

Que os cães ladram se deles me aproximo.

Já que não sirvo como doce amante

Para entreter esses felizes dias

Determinei tornar-me um malfeitor

E odiar os prazeres destes tempos"

                                        (Shakespeare - Ricardo III, apud Freud, 1916, p. 355).

O rei Ricardo é ampliação do que encontramos em nós mesmos, dentro de nossas feridas. Muitos não nascem com cachos dourados, olhos azuis, com a força de um super herói ou com exuberantes contornos e culpam e exigem uma reparação das feridas narcísicas...

Este é o foco presente na história de muitos, escritas em livros, peças teatrais, roteiros de filmes, e como terapeutas ou coordenadores de grupos, é com estes personagens que também vamos nos identificar ou nos estranhar.

Finalizando,  deixo para reflexão:

"Nós somos o que fazemos com o que fizeram conosco, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos" (J.P.Sartre e E.Galeano).

"A arte grega nos ensinou que não há superfícies verdadeiramente belas sem terríveis profundidades."  (F. Nietzsche).


por Sonia Pineda Vicente
Odontopediatra, psicanalista, terapeuta comunitária.

Um comentário:

  1. Sé que fui tantos, y aún los que creí ser y no era, dejaron un lugar para lo que es, pero no saudades. Borges y Fernando Pessoa me dejaron entre espejos y rebaños. Los miles de reflejos que entre los dos crepúsculos del día, y el afecto de personas tan simples que te llenan el alma. Y ahora, a esta hora, mientras el día se prepara para llegar en algún momento cuando la claridad te diga que sí, que hay otro día por vivir, y sepas que hay otros caminos por andar, y que no siempre uno acierta, aunque no trata de equivocarse a propósito, y sepas que los sueños de ayer se han hecho realidad, seguirás disfrutando de esa nueva vida recién descubierta, hace ya mucho presentida: la libertad y la alegría de saber que sos un personaje literario.
    ...na cronica do meu amigo Rolando Lazart

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