sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Não Parecia Eu - Martha Medeiros, 2013



 






NÃO PARECIA EU 
Já deve ter acontecido com
você. Diante de uma situação inusitada, você reage de uma forma que nunca imaginou, e ao fim do conflito se pega pensando: que estranho, não parecia eu. Você, tão cordata, esbravejou com o namorado. Você, tão explosivo, contemporizou com seu sócio. Você, tão pudica, barbarizou na boate. Você, tão craque, perdeu três gols feitos na mesma partida. Você, tão seja lá o que for, adotou uma postura incondizente com seu histórico. Percebeu-se de outro modo. Virou momentaneamente outra pessoa.
 No filme Neblinas e Sombras, o personagem de Mia Farrow refugia-se num bordel e aceita prestar um serviço sexual em troca de dinheiro, ela que nunca imaginou passar por uma situação constrangedora dessas. No dia seguinte, admite a um amigo que, para sua surpresa, teve uma noite maravilhosa, apesar de se sentir muito diferente de si mesma. O amigo questiona: “Será que você não foi você mesma pela primeira vez ?”
São nauseantes, porem decisivas e libertadoras essas perguntas que nos fazem os psicoterapeutas e também nossos melhores amigos, não nos permitindo rota de fuga. E aí ? Quem é você de verdade ?
Viver é um processo. Nosso “personagem” nunca esta terminado, ele vai sendo construído conforme  as vivencias e também conforme nossas preferências, selecionamos uma serie de qualidades que consideramos correto possuir e que funcionam como um cartão de visitas. Eu defendo o verde, eu protejo os animais, eu luto pelos pobres, eu só me relaciono por amor, eu cumpro as leis, eu respeito meus pais, eu não conto mentiras, eu acredito em positivismo, eu acho graça da vida. Nossa, mas você é sensacional , hein ?
Temos muitas opiniões sensatas, repetimos muitas palavras de ordem, mas saber quem somos realmente é do departamento das coisas vividas. A maioria de nos optou pela boa  conduta, e divulga isso em conversas, discursos, blog e demais recursos de autopromoção, mas o que somos, de fato, revela-se nas atitudes, principalmente nas inesperadas. Como você reage vendo alguém sendo assaltado, foge ou ajuda ? Como você se comporta diante de uma cantada de uma pessoa do mesmo sexo, respeita ou engrossa? O que você faria se soubesse que sua avó tem uma doença terminal, contaria a verdade ou a deixaria viver o resto dos dias sem essa perturbação? Qual sua reação diante da mão estendida de uma pessoa que você despreza, aperta por educação ou faz que não viu? Não são coisas que acontecem diariamente, e pela falta de prática, você tem apenas uma ideia vaga de como se comportaria, mas saber mesmo, só na hora. E pode ser que se surpreenda: “Não parecia eu”.
 Mas é você. É sempre 100%  você. Um você que não constava da cartilha que você decorou. Um você que não estava previsto no seu manual de boas maneiras. Um você que não havia dado as caras antes. Um você que talvez lhe assombre por ser você mesmo pela primeira vez.( 19 de agosto de 2012) 
In: Medeiros, M. A Graça da Coisa, 2013, (p. 111-3).
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre aqui o que você está pensando sobre isso...