segunda-feira, 9 de maio de 2011

Carta do papa João Paulo II aos artistas - parte III

A Idade Média

8. Os séculos seguintes foram testemunhas dum grande desenvolvimento da arte cristã. No Oriente, continuou a florescer a arte dos ícones, vinculada a significativos cânones teológicos e estéticos e apoiada na convicção de que, em determinado sentido, o ícone é um sacramento: com efeito, de modo análogo ao que sucede nos sacramentos, ele torna presente o mistério da Encarnação nalgum dos seus aspectos. Por isso mesmo, a beleza dum ícone pode ser apreciada sobretudo no interior de um templo, com os candelabros que ardem e suscitam na penumbra infinitos reflexos de luz. A este respeito, escreve Pavel Florenskij: « Bárbaro, pesado, fútil à luz clara do dia, o ouro reanima-se com a luz trémula dum candelabro ou duma vela, que o faz cintilar aqui e ali com miríades de fulgores, fazendo pressentir outras luzes não terrestres que enchem o espaço celeste ».(14)

No Ocidente, são muito variadas as perspectivas e os pontos donde partem os artistas, dependendo também das convicções fundamentais presentes no ambiente cultural do respectivo tempo. O património artístico, que se foi acumulando ao longo dos séculos, conta um florescimento vastíssimo de obras sacras de alta inspiração, que deixam cheio de admiração mesmo o observador do nosso tempo. Em primeiro plano, situam-se as grandes construções do culto, onde a funcionalidade sempre se une ao génio artístico, e este último se deixa inspirar pelo sentido do belo e pela intuição do mistério. Nascem daí estilos bem conhecidos na História da Arte. A força e a simplicidade do românico, expressa nas catedrais ou nas abadias, vai-se desenvolvendo gradualmente nas ogivas e esplendores do gótico. Dentro destas formas, não existe só o génio dum artista, mas a alma dum povo. Nos jogos de luzes e sombras, nas formas ora massiças ora ogivadas, intervêm certamente considerações de técnica estrutural, mas também tensões próprias da experiência de Deus, mistério « tremendo » e « fascinante ». Como sintetizar em poucos traços, nas diversas expressões da arte, a força criativa dos longos séculos da Idade Média cristã? Uma cultura inteira, embora com as limitações humanas sempre presentes, impregnara-se de Evangelho, e onde o pensamento teológico realizava a Summa de S. Tomás, a arte das igrejas submetia a matéria à adoração do mistério, ao mesmo tempo que um poeta admirável como Dante Alighieri podia compor « o poema sagrado, para o qual concorreram céu e terra »,(15) como ele próprio classifica a Divina Comédia.

Humanismo e Renascimento

9. A feliz estação cultural, em que tem origem o florescimento artístico extraordinário do Humanismo e do Renascimento, apresenta também reflexos significativos do modo como os artistas desse período concebiam o tema religioso. Naturalmente as inspirações são tão variadas como os seus estilos, ou pelo menos como os mais importantes deles. Mas, não é minha intenção lembrar coisas que vós, artistas, bem conheceis. Dado que vos escrevo deste Palácio Apostólico, escrínio de obras-primas talvez único no mundo, quero antes fazer-me voz dos maiores artistas que por aqui disseminaram as riquezas do seu génio, permeado frequentemente de grande profundidade espiritual. Daqui fala Miguel Ângelo, que na Capela Sistina de algum modo compendiou, desde a Criação ao Juízo Universal, o drama e o mistério do mundo, retratando Deus Pai, Cristo Juiz, o homem no seu fatigante caminho desde as origens até ao fim da História. Daqui fala o génio delicado e profundo de Rafael, apontando, na variedade das suas pinturas e de modo especial na « Disputa » da Sala da Assinatura, o mistério da revelação de Deus Trinitário, que na Eucaristia Se faz companheiro do homem, e projecta luz sobre as questões e os anelos da inteligência humana. Daqui, da majestosa Basílica dedicada ao Príncipe dos Apóstolos, da colunata que sai dela como dois braços abertos para acolher a humanidade, falam ainda Bramante, Bernini, Borromini, Maderno, para citar apenas os maiores, oferecendo plasticamente o sentido do mistério que faz da Igreja uma comunidade universal, hospitaleira, mãe e companheira de viagem para todo o homem à procura de Deus.

A arte sacra encontrou, neste conjunto extraordinário, uma força expressiva excepcional, atingindo níveis de imorredoiro valor quer estético quer religioso. O que vai caracterizando cada vez mais tal arte, sob o impulso do Humanismo e do Renascimento e das sucessivas tendências da cultura e da ciência, é um crescente interesse pelo homem, pelo mundo, pela realidade histórica. Esta atenção, por si mesma, não é de modo algum um perigo para a fé cristã, centrada sobre o mistério da Encarnação e, portanto, sobre a valorização do homem por parte de Deus. Precisamente os maiores artistas acima mencionados no-lo demonstram. Bastaria pensar no modo como Miguel Ângelo exprime nas suas pinturas e esculturas, a beleza do corpo humano.(16)

Aliás, mesmo no novo clima dos últimos séculos quando parte da sociedade parece indiferente à fé, a arte religiosa não cessou de avançar. A constatação torna-se ainda mais palpável, se da vertente das artes figurativas se passa a considerar o grande desenvolvimento que, neste mesmo período de tempo, teve a música sacra, composta para as necessidades litúrgicas, ou apenas relacionada com temas religiosos. Sem contar tantos artistas que a ela se dedicaram amplamente (como não lembrar Pero Luís de Palestrina, Orlando de Lasso, Tomás Luís de Victoria?), é sabido que muitos dos grandes compositores — de Händel a Bach, de Mozart a Schubert, de Beethoven a Berlioz, de Listz a Verdi — nos ofereceram obras de altíssima inspiração também neste campo.

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