sexta-feira, 13 de agosto de 2010

CARTAS DE AMOR - RUBEM ALVES


Leio e releio o poema de Álvaro de Campos. Oscilo. Não sei se devo acreditar ou duvidar. Se acredito, duvido. Duvido porque acredito. Pois foi ele mesmo quem disse – ou melhor, o seu outro, o Fernando Pessoa – que ele era um fingidor. “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas...”


Tenho no meu quarto, acima da cabeceira da minha cama, a reprodução de uma das telas mais delicadas que conheço, A mulher que lê, de Johannes Vermeer (1632-1675). Uma mulher, de pé, lê uma carta. O seu rosto está iluminado pela luz da janela. Seus olhos lêem o que está escrito naquela folha de papel que suas mãos seguram; a boca ligeiramente entreaberta, quase num sorriso. De tão absorta, ela nem se dá conta da cadeira, ao seu lado. Lê de pé.


Penso ser capaz de reconstituir os momentos que antecedem este que o pintor fixou. Pancadas na porta interromperam as rotinas domésticas que a ocupavam. Ela vai abrir e lá está o carteiro com uma carta na mão. Pela simples leitura do seu nome no envelope, ela identifica o remetente. Ela toma a carta e, com este gesto, toca uma mão muito distante. Para isto se escrevem as cartas de amor. Não para dar notícias, não para contar nada, não para repetir as coisas por demais sabidas, mas para que mãos separadas se toquem, ao tocarem a mesma folha de papel.


Barthes cita estas palavras de Goethe: “Por que me vejo compelido novamente a escrever? Não é preciso, querida, fazer pergunta tão evidente, porque, na verdade, nada tenho para te dizer. Entretanto tuas mãos queridas receberão este papel...”


De quem será a carta? Um quadro na parede dos fundos da sala nos dá uma pista. É um tema masculino: um mapa mundi. O que nos faz supor que o homem que escreveu a carta para a sua mulher – ela está grávida! – é um marinheiro. É possível imaginar a véspera da partida. Dilacerado pela distância que o aguarda, ele imagina o tempo da separação. Quantos meses? Quantos anos? Quantos naufrágios? Vem-lhe então uma idéia: sai e compra um mapa mundi como presente para sua mulher.
“Meu bem, quando eu estiver longe e me lembrar de você, saberei onde você está: no quarto, na sala, na cozinha... Mas você não saberá onde estarei... Por isso esse mapa mundi, para que você saiba... “É por aqui que iremos navegar”, ele diz escorregando a mão, mostrando estreitos, baias, ilhas... Quando você sentir saudade passe a sua mão pelos lugares onde estou passando a minha. Eu estarei em algum lugar e sentirei o seu carinho.
Naquela tarde, ele lhe deu o mapa. Naquela noite ele lhe deu um filho. O tempo passou. A barriga cresceu. E a saudade ficou nos horizontes vazios. Até que a carta chegou...


Volto ao Álvaro de Campos. Será esta a razão do ridículo das cartas de amor – o descompasso entre o que elas dizem e aquilo que elas realmente querem fazer? Pois o propósito explícito de uma carta é dar notícias, e é por isso que elas são feitas de palavras.


Mas o que elas realmente desejam realizar está sempre antes e depois da palavra escrita – elas querem realizar aquilo que a separação proíbe: o abraço. Quem quer que tente entender uma carta de amor pela análise da escritura estará sempre fora de lugar, pois o que ela contém é o que não está ali, o que está ausente. Qualquer carta de amor, não importa o que se encontre nela escrito, só fala do desejo, da dor da ausência, da nostalgia pelo reencontro.


Aquela carta fez tudo parar. A mulher fecha a porta e caminha pela casa sem nada ver, buscando uma coisa apenas, a luz, o lugar onde as palavras ficarão luminosas. Que lhe importa a cadeira? Esqueceu-se de que está grávida. Seus olhos caminham pelas palavras que saíram das mesmas mãos que a abraçaram. Seu corpo está suspenso naquele momento mágico de carinho impossível que aquele pequeno pedaço de papel abriu no tempo do seu cotidiano.


Uma carta de amor é um papel que liga duas solidões. A mulher está só. Se há outras pessoas na casa, ela as deixou. Bem pode ser que as coisas que estão nela escritas não sejam nenhum segredo, que possam ser contadas a todos. Mas, para que a carta seja de amor, ela tem de ser lida em solidão. Como se o amante estivesse dizendo: “Escrevo para que você fique sozinha...” É esse ato de leitura solitária que estabelece a cumplicidade. Pois foi da solidão que a carta nasceu.


A carta de amor é o objeto que o amante faz para tornar suportável o seu abandono.
Olho para o céu. Vejo a Alfa Centauro. Os astrônomos me dizem que a estrela que agora vejo é a estrela que foi há dois anos. Pois foi esse o tempo que sua luz levou para chegar até os meus olhos. O que eu vejo é o que não mais existe. E é inútil que eu me pergunte: “Como será ela agora? Existirá ainda?” Respostas a essas perguntas eu só vou conseguir daqui a dois anos, quando a sua luz chegar até mim. A sua luz está sempre atrasada. Vejo sempre aquilo que já foi...


Nisto as cartas se parecem com as estrelas. A carta que a mulher tem nas mãos, que marca o seu momento de solidão, pertence a um momento que não existe mais. Ela nada diz sobre o presente do amante distante. Daí a sua dor. O amante que escreve alonga os seus braços para um momento que ainda não existe. A amante que lê alonga os seus braços para um momento que não existe mais. A carta de amor é um abraçar do vazio...


“Ainda bem que o telefone existe”, retrucarão os namorados modernos, que não mais têm de viver o amor no espaço das ausências. Engano. Um telefonema não é uma carta falada. Pois lhe falta o essencial: o silêncio da solidão, a calma da caneta pousada sobre a mesa que espera e escolhe pensamentos e palavras. O telefone põe a solidão a perder. Num telefonema a gente nunca diz aquilo que se diria numa carta. Por exemplo: “Eu ia andando pela rua quando, de repente, vi um ipê-rosa florido que me fez lembrar aquela vez...” Ou: “Relendo os poemas de Neruda encontrei este que, imagino, você gostará de ler...”
A diferença entre a carta e o telefone é simples. O telefonema é impositivo. A conversa tem de acontecer naquele momento. Falta-lhe o ingrediente essencial da palavra que é dita sem esperar resposta. E, uma vez terminado, os dois amantes estão de mãos vazias.


Mas a mulher tem nas mãos uma carta. A carta é um objeto. Se não tivesse podido recolher-se à sua solidão, ela poderia tê-la guardado no bolso, na deliciosa espera do momento oportuno. O telefonema não pode esperar. A carta é paciente. Guarda as suas palavras. E, depois de lida, poderá ser relida. Ou simplesmente acariciada. Uma carta contra o rosto – poderá haver coisa mais terna? Uma carta é mais que uma mensagem. Mesmo antes de ser lida, ainda dentro do envelope fechado, tem a qualidade de um sacramento: presença sensível de uma felicidade invisível...


“Afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor são ridículas.”


(Alves, Rubem. O retorno e terno, Campinas: Papirus, 1994)



(enviado pela amiga Aliene)


Um comentário:

  1. Oi flor!
    Ai que bacana! Agora estaremos mais juntinhas.
    Sobre o Rubem Alves...amooooo.
    Beijinhos.

    Flores e Luz.

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